​Relato de compulsão por compras

Por trás das compras excessivas, há algo mais. Acompanhe o relato real de quem viveu isso na pele, ficou endividada e teve que lutar muito para recuperar sua saúde, mental e financeira.

Eu nunca me achei bonita. Desde nova sempre sofri com minha autoestima, principalmente pelo meu sobrepeso e pelas roupas de marca que nunca pude comprar. Minha família não era humilde, mas o orçamento sempre foi apertado e direcionado a investimentos estudantis e nunca voltado a compras consideradas supérfluas pela minha mãe.

Logo que completei 18 anos, recebi uma herança de um familiar, não era muito… Em realidade, hoje vejo que era pouco dinheiro, mas para uma garota de 18 anos que não trabalhava e abria sua primeira conta bancária, a sensação era de ter ganho na loteria.

Na mesma semana em que o valor foi creditado em minha conta, decidi ir ao shopping e dar uma repaginada no guarda-roupas, exatamente como eu sonhava fazer desde o início de adolescência, no estilo “Patricinhas de Beverly Hills“. Pouco depois disso, eu comecei a trabalhar e, no primeiro happy hour que meus novos colegas de trabalho marcaram, decidi estrear um dos meus novos modelitos.

Foram tantos os elogios que recebi usando aquela calça jeans e uma sandália de salto fino, que fiquei deslumbrada. Pela primeira vez na vida me senti bonita e radiante. Dentro de mim, associei essa melhora de autoestima a peças de roupas modernas e caras.

A partir daí, dessa sensação, comecei a me afundar em sacolas e mais sacolas. Me sentir bonita foi tão maravilhoso, que já não era possível passar mais nenhum dia da minha vida sem me sentir daquela maneira. Consequentemente, eu precisaria de mais peças…

Eu, na montanha-russa…

O primeiro salário que recebi foi investido todo em roupas novas. Sempre que tinha oportunidade de poder ousar um pouco mais no visual, tentava montar novas combinações. As pessoas, principalmente as mulheres, dificilmente entendem um vício assim…

Na minha memória havia uma lembrança de prazer absoluto. Tudo que eu ganhava, investia em roupas e sapatos, e o valor das peças deixou de ter importância. Perdi o senso crítico, não me importava se os valores das peças estavam dentro do meu orçamento ou não; claro que isso não tinha nada a ver com todos os valores morais que meus pais me haviam ensinado ao longo da vida.

Mas, para mim, comprar aquelas lindas peças era um investimento sensato e altamente lucrativo, afinal, se tratava de investir em minha autoestima.

Passava horas me arrumando, e quando não recebia tantos elogios como naquele primeiro happy hour que participei, parecia que nada fazia sentido. Quando a roupa não tinha cumprido sua “função mágica”, repetir o uso daquelas peças (ou mesmo as novas) e não conseguir causar o mesmo efeito me angustiava. Sei lá, era como se as roupas tivessem perdido seu poder durante a lavagem e me deixassem novamente apagada.

Não demorou muito para pequena herança acabar. Pensando nas dificuldades que poderia ter para continuar comprando roupas e sapatos, fiz alguns cartões de crédito, além de liberar o limite do cheque especial. Desta forma, eu me sentia segura, e podia continuar com os “sensatos investimentos” na minha autoestima.

​Relato de compulsão por compras

Fui percebendo que as coisas não iam tão bem, mas simplesmente não via outra forma de ser diferente. Agir diferente seria como me aceitar feia novamente.

Os cartões sempre vinham tão altos que, com meu pequeno salário, comecei a pagar apenas o mínimo de todos eles. Além disso, fazia empréstimos para cobrir o cheque especial, que me deixava sempre com uma carta na manga caso algum vestido ou blusinha bonitos cruzassem meu caminho.

Não importava que seria mais uma dívida. A sensação de estar na loja, conversar com as vendedoras e passar o cartão era maravilhosa: era como receber uma injeção de vida. Às vezes, chegando em casa, já não me sentia mais assim… no guarda-roupas, as peças ainda com etiquetas se acumulavam.

Minhas colegas da faculdade e minha mãe perceberam a frequência das sacolas novas em minhas mãos e começaram a questionar. Diziam que algo devia estar errado, porque sempre que estava triste recorria às compras.

Eu estava tão enrolada financeiramente, e acabava ficando tão em evidência aos olhos de amigas e da minha mãe, que à noite, quando chegava da faculdade, eu entrava em casa sem fazer barulho nenhum, escondia as sacolas no quintal e as buscava de madrugada, só para não chamar a atenção.

E sabe de outra? Pedia para as vendedoras não colocarem as roupas em sacolas… eu as dobrava até ficarem bem pequenas, e as escondia dentro de minha bolsa. Tudo para não chamar a atenção.

Uma vida turbulenta

Naquela época, comprar tanto e compulsivamente era para mim um investimento sensato. Mas como as coisas não têm só um lado, tantas dívidas como as que me via obrigada a ligar incomodavam demais, e deixavam minha vida um tanto turbulenta. Eram muitas as ligações das operadoras de cartão.

Além disso, eu tinha roupas novas para diversas ocasiões, mas não me sobrava nada para aceitar os convites dos meus amigos e exibi-las. Acabava passando muitos finais de semana em casa entediada. Porém, nada disso me fazia mudar de ideia.

Comecei, então, a trabalhar em uma loja de roupas, na que tinha a possibilidade de pegar peças antecipadas para serem descontadas no salário. E outra vez senti genial e privilegiada. Mas não demorou muito para isso se tornar um problema também.

A maior parte do meu salário ficava retida para quitar as peças que eu havia escolhido, e o que sobrava não dava nem para tentar colocar minha vida financeira em ordem. Dois anos, fiquei totalmente encurralada, não tive outra opção que mudar meu comportamento. Eu devia o valor de um carro, e havia gastado tudo isso em roupas.

​Relato de compulsão por compras

O final não foi imediatamente feliz. Comecei a fazer psicoterapia para trabalhar minha autoestima; lá pude perceber, à medida que a coisa ia avançando, que deixei de comprar roupas, mas meu desejo compulsivo foi redirecionado a outra coisa: o álcool. Demorou até eu perceber que esse não era o caminho e conseguir melhorar essa questão da compulsão.

Foram aproximadamente 3 anos de tratamento, e pelo menos 2 para colocar a vida financeira em ordem.

Por via das dúvidas, hoje tenho apenas um cartão de crédito, e com o limite bem baixo! Não aceito ofertas de empréstimos ou limites de cheque especial. Não me sinto bonita todos os dias, mas estou contente com minha autoestima.

Se arrumar tornou-se um prazer, ao invés de uma necessidade. As roupas deixaram de ser uma máscara ou um porto seguro, da mesma forma que deixaram de ser um problema.

Relato real de Melissa (nome ficitício)

Considerações sobre a compulsão por compras

Por falta de conhecimento e informação, muitas pessoas lidam com a questão de fazer compras excessivas como algo natural, ou até mesmo saudável. Mas, assim como foi relatado por Melissa, devem ser consideradas algumas questões:

  1. Vícios e compulsões obedecem um sistema neurológico comum: existe uma lembrança de prazer, fazendo com os comportamentos estejam sempre em busca daquela sensação que a memória registrou. É o chamado sistema recompensatório. Nesse sentido, a pessoa pode direcionar sua compulsão e prazer para diferentes vícios, tais como: jogo, sexo, drogas, álcool, entre outros. Claro que, nesses casos, os prejuízos são ainda maiores.
  2. Mesmo atribuindo algo de nocivo à compulsão por compras, as pessoas não conseguem entender que esse vício pode ser tão destrutivo como qualquer outro. Quando a pessoa compra, a sensação é de adrenalina e prazer, mas esses costumam ser seguidos por episódios de culpa e tristeza. Tal oscilação contribui significativamente para quadros de depressão e ansiedade, que agravarão o quadro; isso sem contar os problemas financeiros, que podem ter um efeito destrutivo em vários âmbitos da vida da pessoa (profissional, familiar, social, etc.).

O tratamento para a compulsão por compras(ou outros tipos de compulsão) costuma ser multidisciplinar, podendo ser necessário associar acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Também é recomendável serem adotadas técnicas para reaprendizagem do uso do dinheiro e resgate da crítica para discernir necessidades.

Colaboração: psicóloga Maitê Hammoud

Fotos: por MundoPsicologos.com

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Maitê Hammoud
maitehammoud@hotmail.com